No século XVIII, era esse o discurso nos documentos oficiais da sociedade colonial em relação à sociedade da resistência: "toda a plebe montanhosa é extremamente rústica e selvagem, e totalmente ignorante da doutrina cristã, porque, como vive pelos montes, aonde cada um tem o seu casal, com a searazinha, e onde pastam os seus gados... aí mesmo vão criando seus filhos brutinhos, sem comunicação, nem doutrina... Eles andam quase mas, dormem sobre uma esteira de tábua... suas casas são de palha, ordinariamente feitas pelos habitantes no pronto espaço de 24 horas... São nimiamente bêbados e mais apaixonados da aguardente, dados a desordens, servindo-se de dois géneros de armas proibidas - uma faca e um pau de quatro quinas, vulgarmente chamado de manduco. Muitos feitos à mancebia, muitos soberbos e vaidosos, e consequentemente integrantes".
Volvidos dois séculos e meio continua a ser este o discurso oficial que sustenta a violência do Estado. Uma violência a dois níveis: a nível da força física e militarizada e a nível da ausência. Por um lado, reconhecendo que algumas construções no Alto da Glória surgiram com o estado de excepção devido à pandemia, em qualquer Estado que se quer de Direito e Democrático, estas e outras situações devem ser revolvidas com base em negociações proporcionais. São vários os casos sabidos de gentes bem posicionadas e encostadas nas tetas do Estado a construir ilegalmente, inclusive perto do local, sem que se tenha o mesmo tipo de aparato. Aliás, ingénuo aquele que acreditar que estas demolições tem como base uma preocupação urbana. Nem urbana, nem de saúde pública. Tenho para mim que este tipo de tratamento a mães pobres com seus filhos configura uma espécie de violência estrutural de género.
Por outro lado, se existe um problema urbano e habitacional na Praia, é tão simplesmente porque existe ausência de uma política pública de habitação ou mesmo de uma política urbana. O problema é na verdade mais conceptual, ao ponto da câmara confundir política urbana com política de loteamento. Diria até que este problema conceptual nem sequer é devido a um problema empírico, mas mais uma questão de foro criminal, se tomarmos em consideração a forma como grupos de amigos e familiares instalados em vários municípios do país tem gerido a coisa pública e, em alguns casos, kasubodiandu a coisa privada.
Por outro lado, se existe um problema urbano e habitacional na Praia, é tão simplesmente porque existe ausência de uma política pública de habitação ou mesmo de uma política urbana. O problema é na verdade mais conceptual, ao ponto da câmara confundir política urbana com política de loteamento. Diria até que este problema conceptual nem sequer é devido a um problema empírico, mas mais uma questão de foro criminal, se tomarmos em consideração a forma como grupos de amigos e familiares instalados em vários municípios do país tem gerido a coisa pública e, em alguns casos, kasubodiandu a coisa privada.
Enganados também aqueles que acreditam que se resolve este tipo de problema com importações de conceitos estrangeirados, que não é mais do que uma tentativa pós-morgadia de servir de intermediário do dito povo junto às agências globais de financiamento e a abertura de outras portas para a especulação imobiliária na era digital. Como diria um José Carlos dos Anjos, é mais uma "forma de regulação e alinhamento dos interesses das elites políticas (e técnicas) locais aos interesses neocoloniais". Estancar isso, a meu ver, passa pelas mãos das ditas associações comunitárias e movimentos sociais que deveriam consciencializar que, no que a cidade diz respeito, a palavra de ordem deve ser direito à cidade e habitação e que isso só é possível deixando os protagonismos e segregações toscas de lado e juntos pensarem na construção de uma cidade rebelde.
[Foto: Dawit L. Petros, 2016]